segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Discurso do Dia da Justiça


República da Guiné-Bissau
Ministério da Justiça
Gabinete da Ministra

DISCURSO DO DIA DA JUSTIÇA

No ano passado, comemorávamos quatro décadas passadas sobre a passação da administração judicial colonial, ocorrida a 12 de Outubro de 1974. Com fé e otimismo, pretendentes de uma República da Guiné-Bissau orientada para a construção de uma SOCIEDADE JUSTA, tal qual reza a Constituição da República, sob o lema "ADMINISTRAR A JUSTIÇA EM NOME DO POVO", celebramos sobretudo os nobres valores da justiça que nos foram proclamados, referenciando a JUSTIÇA SOCIAL, baseada na igualdade de direitos, na solidariedade coletiva e no cruzamento entre o pilar econômico e o pilar social. Comemoramos, aspirantes a tal JUSTIÇA COM «J» GRANDE: melhor qualidade de vida, melhor saúde, melhor educação, melhor habitação e emprego. Porque julgamos visível e alcançável no horizonte.

Cumprido o PROGRAMA MÍNIMO, que consistia na independência, havia a esperança de que a força anímica do Partido, à sombra da figura tutelar de Cabral, saberia caminhar na senda de um PROGRAMA MAIOR. Esperanças que foram sendo sucessivamente traídas pelas lutas intestinas pelo poder no seio do Partido, mesmo depois da abertura ao multipartidarismo.

Mesmo assim, no ano passado, apesar dos muitos sobressaltos que foram abalando as expectativas históricas, o povo renovou o mandato de esperança no PAIGC, em eleições reconhecidas como livres, resultando uma sólida maioria parlamentar e num presidente eleito pelo mesmo Partido, o PAIGC, cuja inquestionável legitimidade fazia sonhar estarem finalmente reunidas as condições para uma estabilidade governativa sustentável, que permitisse enfrentar as inúmeras carências e fragilidades do Estado.

Hoje, registamos simbologicamente O DIA DA JUSTIÇA, que, para mim, será a última aparição pública como Ministra da Justiça, sendo obrigada, por direito e dever, a proceder a algumas considerações sobre o exercício.

Mais uma vez, pela 3.ª, aceitei o desafio que me foi lançado e a ele me cingi, tentando encontrar um equilíbrio entre dignidade pessoal e o compromisso de honra que assumira. Apesar dos vários sinais de mal-estar que vinham sendo notórios no relacionamento entre órgãos de soberania, e das quebras de solidariedade institucional, esperei sempre que a cada vez mais marcada divergência entre o slogan «MON NA LAMA» e o «TERRA RANKA» fosse aplacada numa concertação política que obrigasse ambos os atores à transparência e a boas práticas de governança. Naturalmente que sempre fiel ao enunciado no programa eleitoral do PUSD, o meu Partido, dando o meu melhor «PA LANTANDA NÔ TERRA», nomeadamente lançando as bases da REFORMA ESTRUTURAL e representando com dignidade o Ministério e o país no estrangeiro.

Nestas considerações, que me permito, deixo bem claro que, no Governo exonerado ao qual pertenci, a Justiça foi claramente relegada para segundo plano. Não obstante a aprovação em Conselho de Ministro dum Programa de Urgência para o Setor, não foram disponibilizados sequer fundos mínimos que pudessem fazer face a dívidas acumuladas pelo Estado, mormente o pagamento de rendas a senhorios de imóveis onde estão instalados tribunais. Assim como, não foram tomados em consideração múltiplos contributos, bem como sérios avisos, remetidos ao então Primeiro-Ministro, na área da Justiça.

Eventualmente esperava-se de mim o seguidismo cego, ou que enfileirasse acriticamente na lógica de uma desalmada luta pelo poder pessoal, para garantir um efémero e ingrato cargo. Porém, a ser, enganaram-se no perfil: não é o poder pelo poder que me faz correr. O QUE ME FAZ CORRER É O SONHO DE UMA GUINÉ JUSTA, VERDADEIRAMENTE INDEPENDENTE, GARANTINDO LIBERDADE DE OPORTUNIDADES NO RESPEITO PELA DIVERSIDADE. UMA GUINÉ APONTADA COMO EXEMPLO A UM MUNDO CADA VEZ MAIS AFOGADO EM GUERRAS E TODO O GÉNERO DE INTOLERÂNCIAS.

Durante 14 meses, nesta CASA, com compromisso e honra, servimos com total fidelidade à Constituição e às leis. Todavia, mal começamos o trabalho e, por isso, estou insatisfeita. Sentimento que julgo generalizado a compatriotas, no país ou na diáspora, perante tantos desmandos e atropelos ao Estado de Direito.

De facto, foi-me confiada uma tarefa para quatro anos. Quem ma confiou nunca me proporcionou pernas para andar. Pelo contrário, fui por várias vezes humilhada. Desde o início, na hierarquia do Governo: colocado o Ministério em 13.º lugar, em flagrante violação da Lei.

Mas não é tempo só de lamúrias, nem quero contribuir para o ambiente já tão crispado, de tanta lavagem de roupa suja.

Bem sei, por experiência pessoal, como pode parecer impróprio ouvir uma Ministra da Justiça colocar em evidência a falência do Estado em proporcionar esse bem básico para uma sociedade que é a ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. Contudo, há um ano, no diagnóstico realizado, chamava a atenção para esse lamentável cenário. O aparelho judicial não está minimamente preparado para cumprir as suas funções, nem assenta numa jurisprudência consistente, padecendo de múltiplos vícios como a morosidade, a inconclusividade, uma legislação desadequada ou obsoleta, um déficit de procuração, redundando numa sensação generalizada de inoperância e de impunidade.

Muitos poderão pensar que estou a partir a louça apenas agora que não vejo continuidade no meu trabalho à frente do Ministério da Justiça. Ora já estou habituada a esta nossa terra de ninguém, a ficar no cerne do fogo cruzado. Acusada de fazer de mais, ou de fazer de menos: presa por ter cão e por não ter! A ESPERANÇA É A ÚLTIMA A MORRER, mas há limites para a paciência das pessoas. A SITUAÇÃO É INSUSTENTÁVEL E DECLARADAMENTE INSANÁVEL. Há alturas em que é preciso ousar dizer BASTA!

NESTE DIA DA JUSTIÇA, reconheço como positivo o ACÓRDÃO COLETIVO DO SUPREMO TRIBUNAL de Justiça, traduzindo o entendimento generalizado da população, quanto à ilegitimidade da formação de um Governo fraccionista no seio do PAIGC, que não dava garantias de sustentabilidade parlamentar. No entanto, é errado pensar que a Justiça é meio adequado para resolução de questões políticas. O poder político não tem legitimidade para ingerências no poder judicial; mas, reciprocamente, este também não tem vocação para servir de árbitro entre órgãos de soberania, devendo constituir-se como um último recurso.

Necessariamente, tal como a generalidade do povo guineense, sinto uma grande frustração pessoal, associada a um sentimento de impotência, perante tantos desmandos e atropelos ao Estado de Direito a que vimos assistindo ultimamente. Assistimos a uma subversão de todos os princípios de boa-fé, escalpelizando a Constituição em interpretações formais que esvaziam o seu espírito e pressupostos de saudável cooperação e solidariedade institucional, expondo a DEMAGOGIA dos atores e desacreditando o país perante o exterior, se não mesmo colocando EM PERIGO A SOBERANIA NACIONAL.

Como titular da pasta da Justiça, mesmo se em modo de gestão corrente, insurjo-me contra todas as tentativas de transformar a Justiça num fugaz episódio de uma interminável guerra pessoal que, ao mais alto nível do Estado, envergonha o povo guineense. TEMO PELO FUTURO DO NOSSO PAÍS, quando, em vez de negociar políticas, projetos, ou visões de futuro, se negoceia o número de pastas ministeriais, com titulares em branco. Que esperar de um Governo baseado neste género de pressupostos? Que pensar desta interminável novela de mau gosto?

Será utopia para nós a ESTABILIDADE E O DESENVOLVIMENTO?

Diz o texto da Proclamação do nosso Estado: «O ESTADO DA GUINÉ-BISSAU ASSUME A RESPONSABILIDADE DE PROMOVER O PROGRESSO ECONÓMICO DO PAÍS, CRIANDO AS BASES MATERIAIS PARA O DESENVOLVIMENTO DA CULTURA, DA CIÊNCIA E DA TÉCNICA, COM VISTA À ELEVAÇÃO CONSTANTE DO NÍVEL DE VIDA SOCIAL E ECONÓMICO DAS NOSSAS POPULAÇÕES E PARA A REALIZAÇÃO FINAL DA VIDA DE PAZ, DE BEM-ESTAR E DO PROGRESSO PARA TODOS OS FILHOS DA NOSSA TERRA.»

Mas, em nome da Justiça, com J grande, constato que o Partido no poder tem dado mostras de ser indigno de governar, arrastando para o mesmo lamaçal todo o atual elenco parlamentar, o qual já não corresponde minimamente à vontade popular expressa nas urnas. Este facto traduz-se numa manifesta QUEBRA DE LEGITIMIDADE, da qual o acórdão do Supremo Tribunal é apenas a ponta do iceberg. Assistimos atualmente a uma ANULAÇÃO DE PODERES ENTRE ÓRGÃOS DE SOBERANIA.

À luz do espírito da Constituição, a gravidade da situação obriga à manifestação da SOBERANIA POPULAR. É impossível não assacar responsabilidades a ambas as partes, mas também, para além dos protagonistas do momento, à própria cultura partidária do PAIGC.

Ninguém é insubstituível! Fiz um juramento para quatro anos. Deixo a pasta, passado pouco mais de um ano. Não é a primeira vez. Deixo os esboços traçados a quem me suceder, na vaga esperança de que lhe possam ser de alguma utilidade na esperança da CONTINUIDADE DE ESTADO e da almejada REFORMA ESTRUTURAL, num setor que é caro à Guiné-Bissau e que é o pilar da CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO, querido de Direito. Pois, o Direito, criação humana, é um instrumento, cujo principal objetivo é viabilizar a existência em sociedade, trazendo PAZ, SEGURANÇA E JUSTIÇA.

Apelo para que acreditemos que a Justiça, por mais que tarde "I NA FIRMANTADU NA GUINÉ-BISSAU": com cabeça, tronco e membros.

Mantendo o meu compromisso com o povo guineense e a minha disponibilidade para servir os seus interesses.

Muito obrigada.

A Ministra (em gestão corrente),

Carmelita Pires