quarta-feira, 1 de julho de 2015

CRÓNICA: Trezentos e Sessenta e Cinco


Por: Geraldo Martins
Ministro da Economia e Finanças da Guiné-Bissau

Estava um dia quente e abafado. As nuvens húmidas do final do mês de Junho haviam dispersado no céu em franjas brancas como algodão doce e o calor sufocante do início da tarde convidava para um mergulho nas águas de um mar tépido e calmo.

Saí de casa no meu Ford Edge 2009 e dirigi-me para um gabinete médico situado a pouco menos de quinhentos metros, no mítico bairro de Mermoz, em Dakar.

Quando o meu condutor parou completamente a viatura, desci do carro, atravessei precipitadamente o pequeno portão metálico esverdeado e entrei no edifício, após tocar levemente a campainha.

– É para a consulta com a Dra Silvye – disse em voz baixa à recepcionista.

Ela mandou-me sentar, após ter-me identificado nos ficheiros. Prostrado num sofá na sala de espera, pus-me a folhear as revistas espalhadas por cima da mesinha à minha frente, de vez em quando levantando a cabeça para olhar para a televisão afixada num canto da parede.

Alguns minutos depois, a recepcionista fez-me sinal para me dirigir ao consultório da Dr. Silvye. Levantei-me e dei alguns passos. Já no meio do corredor, um sincrónico clique do meu iphone 4 despertou a minha atenção. Parei, hesitando se devia logo ler a mensagem ou deixar para depois. Uns cinco segundos depois, carreguei no botão para iluminar o écran e vi a mensagem.

Estremeci.

Num instante, senti a adrenalina a atravessar o meu corpo. A ansiedade é uma desordem difícil de controlar. É óbvio que eu sabia que aquela mensagem estaria a caminho, podendo chegar a qualquer momento. Ainda assim, o meu coração deu um ligeiro pulo de susto quando li o texto:

DSP
TOMADA DE POSSE DO GOVERNO AMANHÃ À TARDE.

Já dentro do consultório, enquanto a Dra Silvye me ajeitava suavemente o pescoço diante de um sofisticado aparelho, preparando-se para medir a minha tensão ocular, eu pensava na profunda mudança na minha vida a partir daquele momento.

Ia largar um emprego que me fazia feliz. O que quer que se diga, trabalhar no Banco mundial é uma experiência fabulosa. Não conheço nenhuma outra organização no mundo com tamanha concentração de talentos, onde se aprende todos os dias e onde o conhecimento é a coisa mais bem partilhada. Além disso, o emprego dava-me uma confortável estabilidade financeira.

Mas o que mais me afligia é que não poderia levar a minha família para Bissau. Sentiria falta do abraço caloroso dos meus filhos quando chegava à casa ao início da noite e o Denzel, o Geovani e a Mamy se apressavam para me despir ainda na sala, cada um depois levando uma peça de roupa para o quarto lá em cima. Todavia, a decisão estava tomada e não havia mais voltas a dar. No dia seguinte, peguei o primeiro voo e aterrei em Bissau.

Eis que passaram trezentos e sessenta e cinco dias desde aquela tarde em que recebi o sms no meio de um consultório. Trezentos e sessenta e cinco dias durante os quais participei num esforço complexo de governação do país.

Olhando as coisas em retrospectiva, em que estou a pensar?

Aconteceram várias coisas e vivemos muitas peripécias. Mas penso que dois fenómenos estão sobretudo a definir a nossa sociedade hoje – o restabelecimento do contrato social e a mudança do debate público.

Pouco a pouco, a crença de que o Estado é capaz de ser um provedor de bens públicos está a instalar-se. Os salários de todos os servidores públicos, incluindo o pessoal das representações diplomáticas, estão a ser pagos regularmente. O país está a honrar cabalmente as suas obrigações de pagamento do serviço da dívida externa. As casas das famílias em Bissau têm luz eléctrica e água canalizada quase vinte e quatro horas por dia. A iluminação pública chegou a 28 vilas do interior, dando vida nocturna a essas localidades. O ano lectivo 2014/2015 iniciou-se a tempo e vai concluir a tempo, sem grandes sobressaltos e com os programas cumpridos.

Além disso, as estradas de Bissau estão a ser reabilitadas. Graças em parte a políticas públicas correctas, os produtores de castanha de caju desfrutaram de preços recordes este ano. Estima-se que globalmente os seus rendimentos possam atingir este ano 70 mil milhões de FCFA, ou o equivalente a metade do Orçamento Geral do Estado da Guiné-Bissau em 2015.

O efeito combinado de tudo isto é que o país crescerá entre 4,5% e 5% em 2015. Muitas destas coisas não aconteciam há muito tempo ou nunca antes tinham acontecido. Progressos também estão a ter lugar em áreas intangíveis. Algumas reformas, c0mo a reforma das forças de defesa e segurança e a reforma da fiscalidade, foram iniciadas, embora os seus resultados só serão visíveis dentro de dois a três anos.

O segundo fenómeno é que o centro de gravidade do debate público está progressivamente a mover-se de: ´as-coisas-não-estão-a-ser-feitas´ para ´as-coisas-podiam-ter-sido-mais-bem-feitas`. Isto é fantástico, pois mostra que o país está a passar da paralisia para a acção. As pessoas estão a exprimir livremente as suas opiniões. Devemos encorajar esta tendência, apelando, contudo, a que se exprimam com respeito e elegância.

Mas não tenho ilusões. As coisas não têm sido fáceis. O que fizemos é muito pouco diante daquilo que há por fazer. No meio de tudo isto, cometemos erros, e por vezes, não estivemos à altura das expectativas. Sei que, involuntariamente, ainda havemos de cometer erros. O progresso não é um processo linear. Ele é feito de avanços e recuos. O caminho a percorrer é espinhoso; as montanhas a escalar são agrestes. Nesta caminhada, estamos constantemente a experimentar uma mistura de emoções antagónicas – satisfação, frustração, esperança, dúvida, celebração, etc.

Algumas coisas me têm frustrado. Tenho visto pessoas dedicarem-se apaixonadamente àquilo que é absolutamente supérfluo e insano. Gostava de ver os meus concidadãos a ocuparem-se mais das coisas que sabem fazer e a falarem menos das coisas de que não sabem; gostaria de ver algumas pessoas a pensarem três ou quatro vezes antes de espalharem uma mentira aos quatro ventos, causando mal a pessoas de bem. É preciso perceber uma coisa. A verdade e a mentira falam em tons diferentes. A verdade não precisa falar alto. Até o silêncio basta-lhe. A mentira, ao contrário, precisa gritar para se fazer ouvir. Por isso, acaba sempre por dominar o ruído de fundo.

Mas há também muitas coisas que me deixam feliz. Tenho sido inspirado por um leque de pessoas talentosas que eu tenho encontrado, algumas delas ainda muito jovens e promissoras. Tenho tentado aprender com a humildade das nossas populações que se contentam com pouco e vivem com dignidade.

Estes exemplos têm-me lembrado que na minha posição é preciso permanentemente verificar se os nossos valores fundamentais (rigor, integridade e humildade) estão vivos. É o que tenho tentado fazer todos os dias. Não sou perfeito, nem pretendo ser. Porém, tal como muitos que tenho conhecido, busco constantemente a excelência. Motivado pelos seus exemplos, levanto-me diariamente de manhã com uma enorme vontade de trabalhar mais e melhor.

Sinto orgulho de ter participado em alguns momentos marcantes deste processo. A preparação do Plano Estratégico 2015-2025 Terra Ranka foi um desses momentos. Hoje, a Guiné-Bissau dispõe de uma visão clara de desenvolvimento amplamente sufragada pelos Guineenses.

Por outro lado, Bruxelas teve um significado particular para mim. Nos meus ombros recaía a enorme responsabilidade de apresentar o Plano Estratégico à comunidade internacional naquele inesquecível dia 25 de Março de 2015. Medindo o dever, eu vivia o momento com paixão. Surpreendentemente, estava a controlar bem o nervosismo durante os três dias que precederam o evento.

Em Bruxelas, costumávamos almoçar num restaurante Indiano, na rua que separa o hotel Silken Berlaymont, onde estávamos alojados, da sede da União Europeia. No dia 24 de Março, durante o almoço, senti de repente medo de comer. A comida Indiana é muito picante. E eu gosto de comida picante. Porém, um mau pensamento começou a invadir a minha mente. E se eu comer o picante e o meu intestino se puser a resmungar no dia seguinte?

E se eu me levantar no dia seguinte com dor de cabeça ou com febre? No final do almoço, deixámos o restaurante e começámos a caminhar de volta ao hotel. A certa altura, DSP tocou-me levemente no ombro e disse-me para olhar para o alto lá ao fundo, indicando com a mão esquerda. Levantei a cabeça e vi aquela imagem. A bandeira da Guiné-Bissau estava a flutuar, sozinha, na sede da União Europeia. O sangue arrepiou-me até às profundezas da minha alma.

No dia seguinte, nada do que eu temia aconteceu.

A reunião foi um sucesso. O principal resultado de Bruxelas não é a substancial soma de dinheiro que foi prometida. O principal resultado de Bruxelas é o respeito que o país voltou a ganhar no seio da comunidade internacional. Enquanto Guineense, sinto muito orgulho nisso.

Hoje, apesar das muitas peripécias, quero dizer-vos que acredito sinceramente no futuro do nosso país. Estou confiante de que, enquanto Nação, podemos juntos triunfar, porque a força centrípeta daquilo que nos une é bem maior do que a força centrífuga daquilo que nos separa.

Ao entrarmos no segundo ano da governação, quero agradecer a Deus por me dar saúde para continuar a caminhar.
Agradeço à minha esposa pelo seu apoio indefectível. Agradeço aos meus filhos pela sua paciência. Agradeço particularmente à Mamy por ter aceite graciosamente prescindir das minhas cómicas histórias sobre Fantôme Robot, na hora de ir para a cama.

Agradeço a todos os meus amigos pelo vosso apoio e pelas vossas orações.

Que Deus vos abençoe.

Bissau, 30 de Junho de 2015